sexta-feira, 29 de julho de 2011

Identidade X Genero


Na contemporaneidade, "novas" identidades culturais obrigam a reconhecer que a cultura, longe de ser homogênea e monolítica, é complexa, múltipla, desarmoniosa, descontínua. Um novo movimento político e teórico se pôs em ação, nas últimas décadas, e nele as noções de centro, de margem e de fronteira passaram a ser questionadas. O presente artigo assume essa perspectiva para analisar a constituição de diferenças e identidades de gênero e sexuais e, mais especificamente, as formas como esse processo vem se expressando no campo do currículo. Destaca as estratégias públicas e privadas que são postas em ação, cotidianamente, para garantir a estabilidade da identidade "normal" e de todas as formas culturais a ela associadas; bem como as estratégias que são mobilizadas para marcar as identidades "diferentes" e, ainda, aquelas que buscam superar o medo e a atração provocados pelas identidades "excêntricas".
Palavras-chave: identidades de gênero e identidades sexuais; normal, diferente e excêntrico.
Nós, educadoras e educadores, geralmente nos sentimos pouco à vontade quando somos confrontados com as idéias de provisoriedade, precariedade, incerteza — tão recorrentes nos discursos contemporâneos. Preferimos contar com referências seguras, direções claras, metas sólidas e inequívocas. Apesar disso, hoje são poucos os que se atrevem a negar que a instabilidade e a transitoriedade se transformaram em "marcas" do nosso tempo. Já não é mais possível desprezar tais afirmações como se elas se constituíssem numa ladainha rezada por intelectuais pós-modernistas, uma espécie de mantra que tem o poder de desmobilizar e que, por isso, deve ser exorcizada do campo educacional. De formas muito concretas, temos sido lançados a situações absolutamente imprevisíveis, algumas trágicas, outras fascinantes, quase todas inexplicáveis. Mais do que nunca nos percebemos vulneráveis, sem qualquer preparo para enfrentar os choques e os desafios que aparecem de toda parte.
Que fazer? A muitos talvez pareça mais prudente buscar no passado algumas certezas, algum ponto de estabilidade capaz de dar um sentido mais permanente e universal à ação. O ritmo e o caráter das transformações podem, contudo, converter esse recuo em imobilidade. Para outros — e aqui pretendo me incluir — a opção é assumir os riscos e a precariedade, admitir os paradoxos, as dúvidas, as contradições e, sem pretender lhes dar uma solução definitiva, ensaiar, em vez disso, respostas provisórias, múltiplas, localizadas. Reconhecer, como querem os/as pós-modernistas, que é possível questionar todas as certezas sem que isso signifique a paralisia do pensamento, mas, ao contrário, se constitua em fonte de energia intelectual e política.
Este ambiente de transformações aceleradas e plurais, que hoje vivemos, parece ter se intensificado desde a década de 1960, possibilitado por um conjunto de condições e levado a efeito por uma série de grupos sociais tradicionalmente submetidos e silenciados. As vozes desses sujeitos faziam-se ouvir a partir de posições desvalorizadas e ignoradas; elas ecoavam a partir das margens da cultura e, com destemor, perturbavam o centro. Uma outra política passava a acontecer, uma política que se fazia no plural, já que era — e é — protagonizada por vários grupos que se reconhecem e se organizam, coletivamente, em torno de identidades culturais de gênero, de raça, de sexualidade, de etnia. O centro, materializado pela cultura e pela existência do homem branco ocidental, heterossexual e de classe média, passa a ser desafiado e contestado. Portanto, muito mais do que um sujeito, o que passa a ser questionado é toda uma noção de cultura, ciência, arte, ética, estética, educação que, associada a esta identidade, vem usufruindo, ao longo dos tempos, de um modo praticamente inabalável, a posição privilegiada em torno da qual tudo mais gravita.
"Novas" identidades culturais obrigam a reconhecer que a cultura, longe de ser homogênea e monolítica, é, de fato, complexa, múltipla, desarmoniosa, descontínua. Muitos afirmam, com evidente desconforto, que essas novas identidades "ex-cêntricas" passaram não só a ganhar importância nestes tempos pós-modernos, como, mais do que isso, passaram a se constituir no novo centro das atenções. Não há como negar que um outro movimento político e teórico se pôs em ação, e nele as noções de centro, de margem e de fronteira passaram a ser questionadas. É preciso, no entanto, evitar o reducionismo teórico e político que apenas transforma as margens em um novo centro. O movimento não pode se limitar a inverter as posições, mas, em vez disso, supõe aproveitar o deslocamento para demonstrar o caráter construído do centro — e também das margens! É necessário admitir, ainda, que o questionamento de sistemas e instituições, práticas e sujeitos solidamente estabelecidos na posição central, que hoje é levado a efeito, não implica negar que o centro permanece como uma atraente ficção de ordem e de unidade. O importante é reconhecer que isso se constitui numa ficção. A universalidade e a estabilidade deste lugar central resultam de uma história que tem sido constantemente reiterada — e por isso parece tão verdadeira — do mesmo modo que a posição do ex-cêntrico não passa de uma elaboração que integra esta mesma história.
Há uma estreita articulação entre os movimentos sociais dos anos 60 e o pós-modernismo.  É nesta perspectiva que pretendo desenvolver minha análise sobre a constituição de diferenças e identidades de gênero e sexuais e, mais especificamente, sobre as formas como esse processo vem se expressando no campo do currículo.
Uma noção singular de gênero e sexualidade vem sustentando currículos e práticas de nossas escolas. Mesmo que se admita que existem muitas formas de viver os gêneros e a sexualidade, é consenso que a instituição escolar tem obrigação de nortear suas ações por um padrão: haveria apenas um modo adequado, legítimo, normal de masculinidade e de feminilidade e uma única forma sadia e normal de sexualidade, a heterossexualidade; afastar-se desse padrão significa buscar o desvio, sair do centro, tornar-se excêntrico.
Conforme registra o dicionário, excêntrico é aquele ou aquilo que está fora do centro; é o extravangante, o esquisito; é, também, o que tem um centro diferente, um outro centro. Jogar com acepções dicionarizadas das palavras pode se mostrar um exercício interessante: pode nos ajudar a pensar sobre as formas como se estabelecem as posições-de-sujeito no interior de uma cultura — e, consequentemente, pode nos ajudar a pensar sobre as formas como a escola e o currículo realizam sua parte neste empreendimento.
A posição central é considerada a posição não-problemática; todas as outras posições-de-sujeito estão de algum modo ligadas — e subordinadas — a ela. Tudo ganha sentido no interior desta lógica que estabelece o centro e o excêntrico; ou, se quisermos dizer de outro modo, o centro e suas margens. Ao conceito de centro vinculam-se, frequentemente, noções de universalidade, de unidade e de estabilidade. Os sujeitos e as práticas culturais que não ocupam este lugar recebem as marcas da particularidade, da diversidade e da instabilidade. Portanto, toda essa "conversa" pós-moderna de provisoriedade, precariedade, transitoriedade etc. etc. só pode se ajustar às mulheres, aos negros e negras, aos sujeitos homossexuais ou bissexuais. A identidade masculina, branca, heterossexual deve ser, supostamente, uma identidade sólida, permanente, uma referência confiável.
Em coerência com esta lógica, em nossas escolas, as ciências e os mapas, as questões matemáticas, as narrativas históricas ou os textos literários relevantes sempre assumem tal identidade como referência. A contínua afirmação e reafirmação deste lugar privilegiado nos faz acreditar em sua universalidade e permanência; nos ajuda a esquecer seu caráter construído e nos leva a lhe conceder a aparência de natural. Todas produções da cultura construídas fora deste lugar central assumem o caráter de diferentes e, quando não são simplesmente excluídas dos currículos, ocupam ali a posição do exótico, do alternativo, do acessório.
Não há mais novidade em tais afirmações. Já há algumas décadas o movimento feminista, o movimento negro e também os movimentos das chamadas minorias sexuais vêm denunciando a ausência de suas histórias, suas questões e suas práticas nos currículos escolares. A resposta a essas denúncias, contudo, não passa, na maioria dos casos, do reconhecimento retórico da ausência e, eventualmente, da instituição, pelas autoridades educacionais, de uma "data comemorativa": o "dia da mulher" ou "do índio", a "semana da raça negra" etc. Como resultado, escolas infantis e cursos fundamentais reservam alguns momentos para "contemplar" esses sujeitos e suas culturas, enquanto professoras e professores bem intencionados se esforçam para listar as "contribuições" desses grupos para o país — sua parcela na formação da música ou da dança, sua colaboração nas atividades econômicas ou nas artes etc.
Nas escolas secundárias e superiores, reveste-se o evento com as roupagens adequadas para a faixa etária correspondente: promove-se um ciclo de palestras, convida-se um "representante" da minoria em questão ou se passa um filme seguido de um debate e, com tais providências, dá-se por atendida a tal ausência reclamada. As atividades — sejam quais forem os objetivos ou intenções declarados — não chegam a perturbar o curso "normal" dos programas, nem mesmo servem para desestabilizar o cânon oficial. Momentaneamente, a Cultura (com C maiúsculo) cede um espaço, no qual manifestações especiais e particulares são apresentadas e celebradas como exemplares de uma outra cultura. Estratégias que podem tranquilizar a consciência dos planejadores, mas que, na prática, acabam por manter o lugar especial e problemático das identidades "marcadas" e, mais do que isso, acabam por apresentá-las a partir das representações e narrativas construídas pelo sujeito central. Aparentemente se promove uma inversão, trazendo o marginalizado para o foco das atenções, mas o caráter excepcional desse momento pedagógico reforça, mais uma vez, seu significado de diferente e de estranho. Ao ocupar, excepcionalmente, o lugar central, a identidade "marcada" continua representada como diferente.
Uma estratégia mais desestabilizadora irá colocar em discussão esse tipo de representação. Problematizará, por exemplo, o fato de as mulheres serem denominadas de "o segundo sexo" (uma afirmativa que é, via de regra, consensual e indiscutível) e levará a analisar as narrativas — religiosas, históricas, científicas, psicológicas — que instituíram este lugar para o feminino. Tornará possível discutir o que implica, numa sequência qualquer, ser o segundo elemento; ou o que significa ser o primeiro, isto é, ser a identidade que serve de referência; ou, ainda, permitirá analisar as formas através das quais tal classificação se faz presente nas práticas sociais e culturais de qualquer grupo.
É possível avançar, deste modo, de uma perspectiva de "contemplação, reconhecimento ou aceitação das diferenças" para outra, que permite examinar as formas através das quais as diferenças são produzidas e nomeadas. A questão deixa de ser, neste caso, a "identificação" das diferenças de gênero ou de sexualidade, percebidas como marcas que pré-existem nos corpos dos sujeitos e que servem para classificá-los, e passa a ser uma questão de outra ordem: a indagação de como (e porque) determinadas características (físicas, psicológicas, sociais etc.) são tomadas como definidoras de diferenças. O movimento permite compreender, talvez de forma mais nítida, que toda e qualquer diferença é sempre atribuída no interior de uma dada cultura; que determinadas características podem ser valorizadas como distintivas e fundamentais numa determinada sociedade e não terem o mesmo significado em outra sociedade; e, ainda, que a nomeação da diferença é, ao mesmo tempo e sempre, a demarcação de uma fronteira.
Essa mudança mostra-se especialmente importante quando se trata de identidades de gênero e sexuais, já que põe em questão a sua naturalidade, ao acentuar o caráter cultural da masculinidade, da feminilidade, da homossexualidade ou da heterossexualidade. Isso não significa negar a materialidade desses sujeitos nem desprezar seus corpos e não significa, também, negar todo um conjunto de códigos, representações e práticas discursivas que são utilizados para sinalizar sua identidade. Implica compreender, sim, que são precisamente os discursos, os códigos, as representações que atribuem o significado de diferente aos corpos e às identidades. Judith Butler (1999, p. 153) diz que "a diferença sexual (...) não é, nunca, simplesmente, uma função de diferenças materiais que não sejam, de alguma forma, simultaneamente marcadas e formadas por práticas discursivas". As diferenças de gênero e de sexualidade que são atribuídas às mulheres ou aos sujeitos homossexuais sem dúvida se expressam materialmente, em seus corpos e na concretude de suas vidas, ao mesmo tempo em que são significadas e marcadas discursivamente. As diferenças têm efeitos materiais, evidentes, por exemplo, na impossibilidade ou nas dificuldades legais que homens e mulheres homossexuais têm de constituir família, de assumir a guarda de filhos ou de adotá-los, ou ainda de receber herança de seus companheiros e companheiras após a morte.Eu sinceramente espero que isso tudo mude depois do dia 5/5/11.
Os discursos produzem uma "verdade" sobre os sujeitos e sobre seus corpos, ao denunciarem, por exemplo, os malefícios da menstruação, associando-a à anemia e à tensão, e ao sugerirem, consequentemente, que mulheres "esclarecidas" evitem essa sistemática perda de sangue. Os discursos resultam num "saber", como o que afirma, por exemplo, que, diante de tragédias pessoais, as mulheres acionam zonas cerebrais diferentes e mais amplas do que aquelas acionadas pelos homens. Os discursos traduzem-se, fundamentalmente, em hierarquias que são atribuídas aos sujeitos e que são, muitas vezes, assumidas pelos próprios sujeitos. Por isso, para educadoras e educadores importa saber como se produzem os discursos que instituem diferenças, quais os efeitos que os discursos exercem, quem é marcado como diferente, como currículos e outras instâncias pedagógicas representam os sujeitos, que possibilidades, destinos e restrições a sociedade lhes atribui.
Nesta perspectiva, a diferença se constitui, sempre, numa relação. Ela deixa de ser compreendida como um dado e passa a ser vista como uma atribuição que é feita a partir de um determinado lugar. Quem é representado como diferente, por outro lado, torna-se indispensável para a definição e para a contínua afirmação da identidade central, já que serve para indicar o que esta identidade não é ou não pode ser. Assumir essa perspectiva teórica supõe, portanto, refletir sobre relações entre sujeitos e grupos, significa analisar conflitos, disputas e jogos de poder historicamente implicados nesses processos. Supõe, também, reconhecer que vários embates culturais são levados a efeito, cotidianamente, em muitas instâncias pedagógicas: não apenas na escola, mas também na mídia, no cinema, nas artes, nas campanhas de saúde, nos informes médicos, nos parlamentos, nos tribunais, etc.
Sob esta ótica, os apelos em prol da tolerância e do respeito aos diferentes também devem ganhar outra conotação: é preciso abandonar a posição ingênua que ignora ou subestima as histórias de subordinação experimentadas por alguns grupos sociais e, ao mesmo tempo, dar-se conta da assimetria que está implícita na idéia de tolerância. Associada ao diálogo e ao respeito, a tolerância parece insuspeita quando é mencionada nas políticas educativas oficiais ou nos currículos. Ela se liga, contudo, à condescendência, à permissão, à indulgência — atitudes que são exercidas, quase sempre, por aquele ou aquela que se percebe superior. A tolerância parece se inscrever, assim, numa ótica mais psicológica e individual e, como conseqüência, a meta consiste na mudança de atitude. Certamente não advogo, aqui, o monólogo ou a intolerância, mas sim a atenção crítica que desconfia da inocência das palavras e que põe em questão a suposta neutralidade dos discursos. Para além da mudança de atitude, a análise cultural estaria preocupada, neste caso, com a ação política coletiva.
Se o movimento teórico e político contemporâneo coloca em xeque as noções de centro, de margem e de fronteira, isso deve significar mais do que a aceitação e a tolerância do diferente ou até mesmo mais do que sua transferência da posição marginalizada para a posição central. O grande desafio talvez seja admitir que todas as posições podem se mover, que nenhuma é natural ou estável e que mesmo as fronteiras entre elas estão se desvanecendo. A não-nitidez e a ambigüidade das identidades culturais pode mesmo ser, às vezes, a posição desejada e assumida — tal como fazem, por exemplo, muitos jovens homens e mulheres ao inscrever em seus corpos, propositalmente, signos que embaralham possíveis definições de masculinidade e de feminilidade. Os corpos, como bem sabemos, estão longe de ser uma evidência segura das identidades! Não apenas porque eles se transformam pelas inúmeras alterações que o sujeito e as sociedades experimentam, mas também porque as intervenções que neles fazemos são, hoje, provavelmente mais amplas e radicais do que em outras épocas. Realizamos, todos, um investimento contínuo sobre nossos corpos: através de roupas, adornos, perfumes, tatuagens, cosméticos, próteses, implantes, plásticas, modelagens, dietas, hormônios, lentes... Tudo isso torna cada vez mais problemática a pretensão de tomá-los como estáveis e definidos. Tudo isso torna cada vez mais impossível a pretensão de tomá-los como naturais.
Se a instabilidade é perturbadora, mais ainda nos parecerá a existência daqueles sujeitos que ousam assumi-la abertamente, ao escolherem a mobilidade e a posição de trânsito como o seu "lugar". Para alguns grupos culturais, ser excêntrico significa abandonar qualquer referência à posição central. Não se trata de, simplesmente, se opor ao centro e, menos ainda, de aspirar a ser reconhecido por ele. Esses sujeitos não buscam ser "integrados", "aceitos" ou "enquadrados"; o que desejam é romper com uma lógica que, a favor ou contra, continua se remetendo, sempre, à identidade central. Assumem-se como estranhos, esquisitos, excêntricos e assim querem viver — pelo menos por algum tempo, ou melhor, pelo tempo que bem lhes aprouver.
Para o campo educacional, a afirmação desses grupos é profundamente perturbadora. Não dispomos de referências ou de tradições para lidar com os desafios aí implicados. Não podemos mais simplesmente "encaminhá-los" para os serviços de orientação psicológica para que sejam corrigidos, nem podemos aplicar-lhes um sermão para que sejam reconduzidos ao "bom caminho". Mas certamente é impossível continuar ignorando-os. Talvez tenhamos que admitir que sua presença é parte de nosso tempo. Sua "estranha" figura poderá (quem sabe?) nos ajudar a lembrar que as nossas "figuras" — as formas como apresentamos a nós próprios e aos outros — são sempre formas inventadas e marcadas pelas circunstâncias culturais em que vivemos. Sua figura "esquisita" exerce uma paródia de masculinidade ou de feminilidade e talvez nos leve a reconhecer o quanto todas as representações de gênero ou sexuais se fazem através de sinais e códigos culturais (afinal, nós — que usualmente nos consideramos tão "normais" — também usamos uma série de códigos, gestos, recursos para dizer quem somos, para nos apresentarmos e representarmos como mulheres e homens diante da sociedade).
Consideramos esses sujeitos irreverentes, desrespeitosos, quase iconoclastas por desacatarem normas ou por tornarem ridículos aspectos "sérios" de nossa cultura. Sua ambivalência nos desconforta e ameaça (e também nos fascina, devemos confessar!). Contudo, é preciso pensar que a paródia que exercem sobre as convenções, as regras, normas e preceitos da sociedade contemporânea se constitui numa importante forma de crítica. Uma crítica que problematiza e que, ao mesmo tempo, incorpora aquilo de que fala ou a que se refere, já que a paródia requer uma certa capacidade de se aproximar e até de se identificar com o que está sendo posto em questão.
Seus modos ousados, o deslocamento e a posição fronteiriça que parecem experimentar talvez lhes permita perceber a arbitrariedade de nossos arranjos sociais de formas inéditas, de formas como nós nunca os pensamos. Não se trata de atribuir a essa crítica um caráter de maior lucidez ou clareza — ela será tão parcial e localizada quanto qualquer outra. Seu mérito reside no fato de partir de uma posição não convencional, de uma posição praticamente inabitável e, por isso, capaz de suspeitar de arranjos e de práticas intocáveis. De qualquer forma, o que deve nos interessar é o fato de que eles estão nos dizendo coisas, de que eles são integrantes da sociedade em que vivemos e, além disso, o fato de que, de uma forma ou de outra, eles estão em nossas escolas. Não podemos deixar de lhes prestar atenção.
Talvez seja mais produtivo para nós, educadoras e educadores, deixar de considerar toda essa diversidade de sujeitos e de práticas como um "problema" e passar a pensá-la como constituinte do nosso tempo. Um tempo em que a diversidade não funciona mais com base na lógica da oposição e da exclusão binárias, mas, em vez disso, supõe uma lógica mais complexa. Um tempo em que a multiplicidade de sujeitos e de práticas sugere o abandono do discurso que posiciona, hierarquicamente, centro e margens em favor de outro discurso que assume a dispersão e a circulação do poder. Não eliminamos a diferença, mas, ao contrário, observamos que ela se multiplicou — o que nos indica o quanto ela é contingente, relacional, provisória. A diversidade nos demonstra, mais do que nunca, que a história e as lutas de um grupo cultural são atravessadas e contingenciadas por experiências e lutas conflitantes, protagonizadas por outros grupos. Por isso temos de aprender, nesses tempos pós-modernos, a aceitar que a verdade é plural, que ela é definida pelo local, pelo particular, pelo limitado, temporário, provisório.
Temos de aprender a ser modestos e, ao mesmo tempo, a estarmos atentos em relação ao caráter político de nossas ações cotidianas. Precisamos prestar atenção às estratégias públicas e privadas que são postas em ação, cotidianamente, para garantir a estabilidade da identidade "normal" e de todas as formas culturais a ela associadas; prestar atenção às estratégias que são mobilizadas para marcar as identidades "diferentes" e aquelas que buscam superar o medo e a atração que nos provocam as identidades "excêntricas". Precisamos, enfim, nos voltar para práticas que desestabilizem e desconstruam a naturalidade, a universalidade e a unidade do centro e que reafirmem o caráter construído, movente e plural de todas as posições. É possível, então, que a história, o movimento e as mudanças nos pareçam menos ameaçadores.

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